segunda-feira, 30 de abril de 2012

3 fases por Nietzsche

in "O poder do mito", de Joseph Campbell:
" Numa espécie de parábola, Nietzsche descreve o que chama de as três transformações do espírito. A primeira é a do camelo- da infância e da juventude. O camelo se ajoelha e diz: "Ponha uma carga sobre mim." Isso representa o período da obediência, da assimilação das instruções e informações necessárias, segundo a sociedade, para se viver uma vida responsável.
   Mas, quando está bem carregado, o camelo se ergue nas patas e corre para o deserto, onde se transforma num leão; quanto mais pesada a carga, mais forte o leão. Bem, o dever do leão é matar o dragão, e o nome do dragão é "Você fará". Em cada uma das escamas desse animal está impresso um "você fará": alguns, de quatro mil anos; outros, das obrigações do dia. Enquanto o camelo- a criança- tem de se submeter aos muitos "você fará", o leão-o jovem- se dedica a atirá-los fora e chega à sua autodeterminação.
   Assim, quando o dragão está completamente morto, com todos os "você fará" desativados, o leão se transforma numa criança que abandona a sua própria natureza, como uma roda impelida pelo próprio eixo. Não mais regras para obedecer, não mais regras decorrentes das necessidades e deveres históricos da sociedade local, mas o genuíno impulso vital de uma vida em flor."

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Sobre a fotografia, de Jean Baudrillard, in "A Transparência do Mal"

" A fotografia mostra o estado do mundo em nossa ausência. A objetiva explora essa ausência. Até nos rostos ou nos corpos carregados de emoção e de patético, é ainda essa ausência que ela explora. Fotografa-se, pois, o melhor dos seres para os quais não existe o outro ou já não existe (os primitivos, os miseráveis, os objetos). Só o desumano é fotogênico. É a esse preço que funciona uma estupefação recíproca, logo, uma cumplicidade nossa para com o mundo e do mundo para conosco.
  A fotografia é nosso exorcismo. A sociedade primitiva tinha suas máscaras, a sociedade burguesa seus espelhos, nós temos nossas imagens.
  Acreditamos forçar o mundo pela técnica. Mas, pela técnica, é o mundo que se impõe a nós, e o efeito de surpresa devido a essa inversão é considerável.
  Você pensa estar fotografando determinada cena por prazer- de fato é ela que quer ser fotografada, você é mero figurante da encenação. O sujeito é apenas o agente da aparição irônica das coisas. A imagem é, por excelência, o médium dessa publicidade gigantesca que o mundo faz de si, que os objetos fazem de si, forçando nossa imaginação a se diluir, nossas paixões a se extroverterem quebrando o espelho que lhes estendíamos, hipocritamente aliás, para captá-los.
  O milagre hoje é que as aparências, por muito tempo reduzidas a uma servidão voluntária, voltam-se para nós, e contra nós, soberanas, através da técnica da qual nós as havíamos expulsado. Hoje elas vêm de outro lugar, do lugar que lhes é próprio, do âmago de sua objetividade, irrompem de todos os lados, multiplicam-se por si com alegria ( a alegria de fotografar é um júbilo objetivo; quem nunca sentiu esse enlevo objetivo da imagem, de manhã, num deserto, não terá entendido nada da delicadeza patafísicado mundo).
  Se uma coisa quer ser fotografada, é justamente porque não quer entregar seu sentido, porque não quer refletir-se. É porque ela quer ser captada diretamente, violentada ali mesmo, iluminada em cada pormenor, em sua qualidade fractal. Sente-se que uma coisa quer ser fotografada, quer tornar-se imagem, e não é para durar; ao contrário, é para melhor desaparecer. E o sujeito só será um bom médium fotográfico se entrar nesse jogo, se exorcizar seu próprio olhar e seu próprio julgamento estético, se gozar com sua própria ausência.
  É preciso que uma imagem tenha essa qualidade, a de um universo do qual o sujeito se retirou. É a própria trama dos pormenores do objeto, das linhas, da luz, que deve significar essa interrupção do sujeito e, por isso, essa interrupção do mundo também, que dá suspense à foto. Pela imagem, o mundo impõe sua descontinuidade, sua fragmentação, sua ampliação, sua instantaneidade artificial. Nesse sentido, a imagem fotográfica é a mais pura, porque não simula nem o tempo nem o movimento, e se mantém no mais rigoroso irrealismo. Todas as outras formas de imagem (cinema e demais) longe de ser progressos, talvez não sejam senão formas atenuadas dessa ruptura da imagem pura com o real. A intensidade da imagem está na proporção de sua descontinuidade e de sua abstração maximal, isto é, de sua opção de recusa do real. Criar uma imagem consiste em retirar ao objeto todas as suas dimensões uma por uma: peso, relevo, perfume, profundidade, tempo, continuidade e, é claro, significado. É à custa dessa desencarnação, desse exorcismo, que a imagem ganha um acrésimo de fascínio, de intensidade, que ela se torna o médium da objetividade pura, que ela se torna transparente a uma forma de sedução mais sutil. Juntar todas essas dimensões uma por uma, o relevo, o movimento, a emoção, a idéia, o patético, o significado, o desejo, para fazer o melhor, para tornar mais real, isto é, mais bem simulado, é um contra-senso total em temros de imagem. E até a técnica aí fica presa em sua própria armadilha.
  Na fotografia as coisas articulam-se por uma operação técnica que corresponde à articulação de sua banalidade. Vertigem do pormenor perétuo do objeto. Excentricidade mágica do pormenor. O que é uma imagem para outra imagem, uma foto para outra foto: contguidade fractal, nenhuma relação dialética. Nenhuma "visão do mundo", nenhum olhar- a refração do mundo, em seu pormenor, com armas iguais.
  A imagem fotográfica é dramática. Por seu silêncio, por sua imobilidade. Aquilo com que as coisas sonham, aquilo com que sonhamos, não é com o movimento, é com essa imobilidade mais intensa. Força da imagem imóvel, força da ópera mítica. O próprio cinema cultiva o mito da marcha lenta e da imagem parada como o ponto mais alto da dramaticidade. E o paradoxo da televisão terá sido sem dúvida o de desenvolver todo o charme ao silêncio da imagem.
  A imagem fotográfica é dramática também pela luta entre uma vontade do sujeito de impor uma ordem, uma visão, e a vontade do objeto de impor-se em sua descontinuidade e em sua imediatidade. na melhor hipótese, é o objeto que vence, porque a imagem-foto é a de um mundo fractal, do qual não há equação nem intimação me lugar nenhum. Diferente da arte, da pintura, do próprio cinema que, pela idéia, pela visão ou pelo movimento, sempre esboçam a figura de uma totalidade.
  Não o desapego do sujeito em relação ao mundo, mas a desconexão dos objetos entre eles, a sucessão aleatória dos objetos parciais e dos pormenores. da síncope musical como do movimento das partículas. A foto é o que nos aproxima mais da mosca, de seu olho facetado e de seu vôo em linha quebrada.
  O desejo de fotografar talvez venha desta constatação; visto na perspectiva de conjunto, do lado do sentido, o mundo decepciona bastante. Visto, em pormenor, de surpresa, é sempre de uma evidência perfeita."