sexta-feira, 9 de maio de 2008

Maconha do ponto de vista psicossomático

Vento de maio...
Falar de psicologia, pessoas, idéias...
Viver...

“ Certa vez, um homem muito abatido dirigiu-se ao Iud (discípulo de Rabi Jacob Tschak Lubliner) e pediu-lhe que rezasse por sua saúde. O Iud disse-lhe que fosse pedir isso a um certo senhor chamado Shalom, numa cidade próxima.
Ao chegar, o homem descobriu que o único Shalom que vivia lá era um bêbado que morava na periferia da cidade, num casebre miserável. O homem esperou que Shalom ficasse sóbrio e então fez seu pedido. O bêbado pediu um galão de uísque e, após recebê-lo, aconselhou o homem a se banhar no rio, pois desta forma ficaria curado. E aconteceu como lhe havia dito.
Quando o homem voltou a se encontrar com o Iud, perguntou ao rabino por que o havia enviado a um bêbado. O rabino respondeu: ‘Shalom, meu amigo, tem uma natureza fantástica e gentil e freqüentemente ajuda aqueles que o procuram. Sua única falta é o vício por um bom trago, mas é este desespero por bebida que o salva de todos os outros pecados.”

Meu objetivo aqui é abordar o consumo de maconha do ponto de vista psicossomático, isto é, me aproximando de seus aspectos biológicos, psíquicos e sociais.


Do ponto de vista biológico, a maconha não pode ser considerada uma droga tão forte por não ser uma droga letal. Me parece por tudo que estudei que a maconha é tão forte quanto o álcool e não vejo razões para um ser proibido e o outro não. Racionalmente me parece que os dois deviam ser proibidos ou os dois liberados.
A história da maconha no Brasil tem seu início com a própria descoberta do país. A maconha é uma planta exótica, ou seja, não é natural do Brasil. Foi trazida para cá pelos escravos negros, daí a sua denominação de fumo-de-Angola. O seu uso disseminou-se rapidamente entre os negros escravos e nossos índios, que passaram a cultivá-la. Séculos mais tarde, com a popularização da planta entre intelectuais franceses e médicos ingleses do exército imperial na índia, ela passou a ser considerada em nosso meio um excelente medicamento indicado para muitos males. A demonização da maconha no Brasil iniciou-se na década de 1920 e, na II Conferência Internacional do Opio, em 1924, em Genebra, o delegado brasileiro Dr. Pernambuco afirmou para as delegações de 45 outros países: "a maconha é mais perigosa que o ópio". Apesar das tentativas anteriores, no século XIX e princípios do século XX, a perseguição policial aos usuários de maconha somente se fez constante e enérgica a partir da década de 1930, possivelmente como resultante da decisão da II Conferência Internacional do Opio. O primeiro levantamento domiciliar brasileiro sobre consumo de psicotrópicos, realizado em 2001, mostrou que 6,7 por cento da população consultada já havia experimentado maconha pelo menos uma vez na vida (lifetime use), o que significa dizer que alguns milhões de brasileiros poderiam ser acusados e condenados à prisão por tal ofensa à presente lei. No presente, um projeto de lei foi aprovado no Congresso Nacional propondo a transformação da pena de reclusão por uso/posse de drogas (inclusive maconha) em medidas administrativas.
A maconha produz seus efeitos quando inalada durante no máximo 3 horas, se nenhum outro cigarro for fumado, sendo o pico plasmático de sua ação de 10 a 30 minutos após o consumo de um cigarro seu. A absorção é de 50% do THC presente na planta nessa forma de consumo que é a mais comum, (a absorção é maior se a planta é ingerida- 90%).
O THC é absorvido através da fixação pulmonar (na forma de cigarros). Seus efeitos físicos são: boca seca, olhos vermelhos, aumento de batimentos cardíacos. A memória de curto prazo do usuário é afetada e sua percepção de sons e de tempo também. Para se ter efeitos na percepção, o consumo deve ser maior que 5 mg.
As alterações provocadas em seus usuários são: euforia, hiperestesia sensorial, sono, aumento do apetite por doces.
Por seus vários efeitos, a maconha é considerada um afrodisíaco.
A coordenação motora é afetada com o consumo da maconha, embora essa alteração possa não ser notada devido ao hábito de consumo de maconha e ao treino.
A boca seca se deve a uma diminuição da secreção salivar. Os olhos vermelhos se devem a uma hiperemia conjuntival acompanhando uma queda da pressão intra-ocular (o que poderia indicar o uso da cannabis no tratamento de glaucoma). Os olhos também ficam mais secos.
A maconha é perigosa para quem tem problemas vasculares. Num caso relatado em 1979, um homem de 25 anos desenvolveu um infarto subendocardial agudo após fumar cannabis.
O efeito mais evidente e imediato do fumo ou da ingestão de cannabis é o rápido aumento do ritmo cardíaco (até 90 batimentos por minuto), que diminui no intervalo de uma hora e não constitui nenhuma ameaça para um indivíduo saudável. A pressão sanguínea pode se elevar ligeiramente e pode ocorrer hipotensão postural. Os fumantes desenvolvem uma tolerância aos efeitos cardíacos e psicotrópicos do THC após duas ou três semanas de fumo diário.
Hoje em dia sabe-se que a absorção neurológica da cannabis se faz através de receptores específicos no cérebro. Esses receptores estão presentes na maior parte no hipocampo, mas também há receptores no córtex e nos testículos.
Após o consumo de maconha, o sítio receptor, uma proteína da superfície da célula, ativa proteínas G no interior da mesma e leva a uma cascata de outras reações que geram euforia.
Em 1984, Miles Herfenham e seus colegas do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA mapearam os receptores de cannabis no cérebro, usando análogos radioativos do THC desenvolvidos pela Pfizer Central Research.
O maior número de receptores foi encontrado no hipocampo, onde ocorre a consolidação da memória e onde traduzimos o mundo externo num “mapa” cognitivo e espacial, e no córtex cerebral, onde se realiza a cognição mais elevada. Pouquíssimos receptores foram encontrados no tronco cerebral, onde os sistemas automáticos de manutenção da vida são controlados. Isso pode explicar porque é praticamente impossível morrer de uma dose excessiva de cannabis.
A presença de receptores de THC nos gânglios basais- uma área do cérebro envolvida na coordenação motora- pode permitir aos canabinóides mitigar a espasticidade. Alguns receptores estão localizados na medula espinhal, sendo talvez o sítio da atividade analgésica da cannabis. Um pequeno número de receptores foi encontrado nos testículos, o que possivelmente explica os efeitos do THC sobre a espermatogênese e o impulso sexual.
O primeiro uso documentado do cânhamo como remédio aparece por volta de 2300 a.C., quando o legendário imperador chinês Chen Nong prescreveu a “chu-ma” (cânhamo fêmea) para o tratamento de constipação, gota, beribéri, malária, reumatismo e problemas menstruais. Chen Nong classificou a “chu-ma” como um dos Supremos Elixires da Imortalidade.
Os médicos aiurvédicos da Índia usavam o bangüê , mistura líquida de cânhamo, leite, açúcar e especiarias, para tratar dezenas de doenças. Ele era indicado para diarréia, epilepsia, delírio e insanidade, cólica, reumatismo, gastrite, anorexia, consumpção, fístula, náusea, febre, icterícia, bronquite, lepra, distúrbios do baço, diabetes, resfriado, anemia, dor menstrual, tuberculose, elefantíase, asma, gota, constipação e malária. Outros preparados do cânhamo são usados para induzir o sono, como diurético e no combate à hidrofobia (raiva), para sangue na urina, hemorróidas, febre do feno, asma e doenças da pele.
O cânhamo era um remédio popular muito apreciado na Europa medieval e recebeu menção honrosa como planta medicinal em herbários como os de William Turner, Mattioli e Dioscobas Taberaemontanus.
No final do século XIX, a cannabis foi incluída em dezenas de remédios disponíveis mediante prescrição ou diretamente no balcão. Entre eles estavam o digestivo Chlorodyne e o Corn Collodium, manufaturados pela Squibb Company. A Parke-Davis produzia Casadein, Utroval e medicamento para cólica veterinária e a Eli Lilly produzia os tabletes sedativos Dr. Brown’s Xarope, Xarope composto Tolu, Xarope Lobelia, Neurosine e Cura a Tosse em um dia. A empresa Grimault and Sons vendia cigarros de cannabis como remédio para asma.
Com a oficialização de sua proibição, a cannabis foi eliminada da farmacopéia inglesa em 1932. Foi expurgada da farmacopéia americana em 1942 e o Merck Index suprimiu-a de seu catálogo em 1950. A farmacopéia indiana continuou a arrolar a cannabis até 1966.
No entanto, apesar de toda a proibição, das campanhas e recusas da parte dos governos, as pessoas continuaram a pesquisar. Exemplos de pesquisas com maconha: uso terapêutico da maconha na síndrome metabólica (2005); uso terapêutico da cannabis sativa como anticonvulsivo em quadros de epilepsia (2005); estudo do canabidiol, um dos componentes da cannabis sativa, sendo usado como agente anti-psicótico (2006); uso terapêutico da cannabis sativa em doenças neuro-degenerativas (2007).
A passagem de THC através da placenta está presente e comprovada em animais e seres humanos. Em fetos de mães usuárias de maconha foram constatadas complicações como retardo do crescimento intra-uterino, diminuição do peso gestacional e indução de leucemia. Os pesquisadores alertam para uma atenção especial às gestantes usuárias de maconha, no sentido de terem orientação para os riscos que trazem para seus filhos.
A aplicação terapêutica dos canabinóides é um tema muito controverso pois, apesar das propriedades terapêuticas, estes compostos apresentam também efeitos psicotrópicos, considerados os principais vilões no uso medicinal desta classe de compostos. Dois exemplos de fármacos desenvolvidos com base em compostos canabinóides são o Marinol® (Dronabinol, (-)-D9-THC), desenvolvido pelo laboratório Roxane (Columbus - EUA) e o Cesamet® (Nabilone), desenvolvido pelo laboratório Eli Lilly (Indianápolis - EUA) e agora liberado para uso terapêutico no Reino Unido14,15. Estes medicamentos são comercializados para controle de náuseas produzidas durante tratamentos de quimioterapia e como estimulantes do apetite, durante processos de anorexia desenvolvidos em pacientes com síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS)16.




Do ponto de vista social, segundo Zoja, o consumo de drogas visa retomar para o sujeito o contato com o sagrado. Ela é uma tentativa de iniciação, insconsciente e por isso mesmo, impossível de se concluir num processo iluminador para o sujeito.
Segundo Zoja, as etapas do processo podem ser resumidas assim:
1. Situação inicial a ser transcendida porque insignificante. Assim como, para fugir à insignificância, o adolescente da sociedade primitiva se entregava à iniciação que lhe conferia enfim uma identidade completa e adulta, assim também o homem de nossa sociedade, perdido, passivo, capaz apenas de consumir e de repetir gestos realizados por milhões de outros homens, sonha secretamente com uma transformação que o torne adulto, inconfundível, protagonista, criador, e não mais somente consumidor.
2. Morte iniciática. Aceitação de uma fase de fechamento em relação ao mundo, renúncia à identidade anterior, afastamento libidinal dos investimentos usuais (que na nossa sociedade deveria consistir sobretudo numa abstinência das práticas consumistas); vejam com que propriedade Fernando Pessoa nos fala dessa etapa.
INICIAÇÃO

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda Caverna,
Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma extrema,
Mas vês que são teus iguais.

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto, entre ciprestes.

Neófito, não há morte. “

3. Renascimento iniciático, favorecido psicologicamente pela partilha com outros da experiência, pelo acompanhamento dos rituais e, quimicamente, por um consumo controlado da droga, esse controle é uma fantasia quase sempre presente entre os jovens drogados, mas, em geral, só em certas sociedades possui realidade efetiva.

Somos impelidos a um consumo desenfreado por estarmos numa sociedade consumista. Há sempre algum tipo de encontro, de prazer subjetivo associado ao consumo da droga, além de seus efeitos físicos.
É a manutenção desse prazer , enquanto sentido encontrado para o sujeito,com a construção de uma outra via de acesso a ele que constitui o trabalho com “redução de danos” ou com uma abordagem filosófica do assunto da droga dentro de consultórios.
Acho que o Bachelard nos ajuda a pensar: “ Como todos os hábitos que caracterizariam o ser- caso fossem conhecidos- não se aproveitam simultaneamente de todos os instantes que os poderiam atualizar, a unidade de um ser parece sempre tocada de contingência. No fundo, o indivíduo já não é mais que uma soma de acidentes- mas, além disso, essa soma é, ela própria, acidental. Da mesma maneira, a identidade do ser nunca se realiza plenamente, ela é afetada pelo fato de a riqueza dos hábitos não ter sido regida com atenção suficiente. A identidade global é feita, então, de repetições desnecessárias mais ou menos exatas, de reflexos mais ou menos detalhados. Sem dúvida, o indivíduo empenha-se em copiar o hoje do ontem; essa cópia é ajudada pela dinâmica dos ritmos, mas nem todos esses ritmos estão no mesmo ponto de sua evolução, e é assim que a mais sólida das permanências espirituais, de identidade desejada, afirmada num caráter, se degrada em semelhança. A vida, então, conduz nossa imagem de espelhos em espelhos; somos, assim, reflexos de reflexos, e nossa coragem é feita da lembrança de nossa decisão. Mas, por firmes que sejamos, jamais nos conservamos inteiros, porque nunca fomos conscientes de todo o nosso ser.”


Do ponto de vista psíquico, a toxicomania é uma fuga diante do desejo. O toxicômano vive a ilusão de achar que é possível achar objetos adequados, recusando a natureza insaciável do desejo. A dependência se reduz a perseguir um prazer negativo, perseguição necessariamente sem fim na qual se dá um “neodesejo”, um desejo novo e imperioso, que reaviva a onipotência infantil e torna impossível a saciedade.
Mas o consumo funciona como um ritual que dá um sentido, uma identidade de “herói negativo” ao usuário.
Segundo Andrew Weil, que fez pesquisas com sujeitos humanos com maconha, a cannabis sativa inalada funciona como um placebo ativo, intensificando os estados psíquicos pré-existentes. A maconha pode ser assim considerada uma droga “esotérica”: seus pormenores são conhecidos por seus poucos usuários.
Para Hillman, a droga funciona como uma ruptura técnica dentro do contexto familiar, quando não é possível se ouvir o chamado transcendente de outra forma dentro desse contexto.

Uma história que pode nos ajudar ao lidarmos com a questão das drogas...

O REI E O CADÁVER

Foi extraordinária a maneira como o rei se viu envolvido na aventura.
Diariamente, durante dez anos, aparecia no salão de audiências, onde ele solenemente sentado ouvia petições e dispensava justiça, um asceta mendicante que, sem lhe dizer palavra, lhe oferecia uma fruta. O soberano aceitava o presente trivial, passando-o sem pensar em um instante, a seu tesoureiro, que permanecia em pé atrás do trono. Sem fazer pedido algum, o mendigo se retirava. Perdia-se na multidão de suplicantes, não revelando o menor sinal de desapontamento ou impaciência. Porém, um dia, passados uns dez anos há primeira aparição, um macaco domesticado, escapando dos aposentos das damas no interior do palácio, entrou aos pulos no salão e saltou sobre o braço do trono. O mendicante acabara de apresentar seu presente e o rei, brincando, entregou-a ao símio. Quando o animal mordeu a fruta, uma valiosa jóia caiu de dentro dela e rolou pelo chão. Os olhos do rei abriram-se de espanto. Voltou-se com dignidade para o tesoureiro: “O que foi feito de todas as outras frutas?”, perguntou. O tesoureiro não soube responder. Sempre atirara aqueles presentes inexpressivos através da gelosia da alta janela da sala do tesouro, não se dando sequer ao trabalho de abrir a porta. Desculpando-se, correu para o subterrâneo do tesouro real. Abrindo-o, dirigiu-se à parte situada sob a pequena janela, onde encontrou, no chão, uma massa de frutas apodrecidas em vários estágios de decomposição. Lá estava, entre os detritos de tantos anos, uma grande porção de gemas incalculavelmente preciosas.
Muito feliz, o rei confiou-as ao tesoureiro. De espírito generoso, o monarca não era ávido por riquezas, mas sua curiosidade fora despertada. Por isso, quando na manhã seguinte o asceta apresentou sua oferenda aparentemente modesta, o rei recusou-se a aceitá-la, a menos que o ofertante quisesse conversar um pouco.
O santo homem respondeu que desejava falar-lhe em particular. O rei lhe satisfez o desejo e o mendicante formulou, afinal, seu pedido.
Disse ao rei necessitar da ajuda de um herói, que fosse homem verdadeiramente intrépido, para uma tarefa ligada à magia.
O rei interessou-se em saber mais.
“As armas dos verdadeiros heróis”- explicou o asceta- “são famosas nos anais mágicos por possuírem poderes de exorcismo muito especiais.”
O rei permitiu que o suplicante continuasse.
O forasteiro convidou-o a ir, na noite da próxima lua nova, ao grande campo funerário onde eram cremados os mortos da cidade e enforcados os criminosos.
Sem se intimidar, o rei concordou: o asceta, cujo nome- bem adequado era “Rico em paciência”, despediu-se.
Chegou a noite marcada, da próxima lua nova. Desacompanhado, o rei cingiu sua espada, envolveu-se em um manto escuro e, ocultando o rosto, rumou para incerta aventura. À medida que se aproximava do campo de cremação, fazia-se mais visível o tumulto de espectros e demônios que pairavam pelo lúgubre lugar; em festim, regalando-se com os cadáveres celebravam uma horrenda folia. Destemido, o soberano continuou seu caminho. Ao passar pelos crematórios, à luz das piras ainda fumegantes, seus olhos alertas meio viram, meio adivinharam, os esqueletos e crânios calcinados, dispersos e enegrecidos. Os ouvidos ressoando com o medonho tumulto dos ghouls, continuou caminhando em direção ao lugar do encontro; lá estava o feiticeiro, desenhando atentamente um círculo mágico no solo.
“Aqui estou”, disse o rei. “Que posso fazer por ti?”
O outro mal ergueu os olhos. “Ide até o outro extremo do campo crematório”, disse, “e encontrareis, balançando-se em uma árvore, o cadáver de um enforcado. Cortai a corda e trazei-o aqui.”
O rei voltou-se e, cruzando outra vez o grande campo, chegou a uma árvore gigantesca. Sem luar, apenas o frágil tremular das piras meio extintas iluminava a noite cortada pelo ruído inumano dos duendes. Ainda assim, o rei não sentiu medo; encontrando o enforcado que, suspenso à árvore, oscilava quase imperceptivelmente, subiu e cortou a corda com a espada.
O corpo, ao tombar, gemeu como se estivesse sido ferido. O rei, acreditando tratar-se de um vivente, começou a apalpar aquela forma rígida. Uma gargalhada estridente escapou da garganta e o monarca percebeu que o corpo estava habitado por um fantasma.
“De que te ris?”, perguntou.
No momento em que falou o cadáver voltou de volta ao galho da árvore.
Subindo novamente, o rei cortou a corda e trouxe o corpo para baixo.
Levantou-o, dessa vez sem uma palavra, colocou sobre os ombros e começou a andar. Não dera muitos passos quando a voz no cadáver principiou a falar: “Ó rei, permiti que encurte vosso caminho com uma história”, disse. O soberano não respondeu, e o espírito narrou seu conto. Quando acabou seu conto, perguntou ao monarca, o julgamento dele a respeito da história, ameaçando-o: “Se souberdes a resposta e não a derdes, vossa cabeça se partirá em cem pedaços.”
O rei acreditou que sabia qual era a resposta. Embora desconfiasse que, se pronunciasse uma palavra, o cadáver voaria de volta para a árvore, não desejava que sua cabeça explodisse.
Quando a última palavra desse parecer deixou os lábios do rei, seu fardo, gemendo em fingida agonia, evaporou-se-lhe das costas, e o monarca presumiu que deveria ter voltado à árvore, pendendo-lhe novamente dos galhos. Voltando sobre seus passos, cortou a corda, recolocou o fardo aos ombros e tentou outra vez.
“Meu caro senhor”, disse a voz, outra vez se dirigindo a ele, “incumbiram-vos de uma tarefa difícil e curiosa. Permiti-me entreter-vos, enquanto isso, com um conto agradável”. (...)
Foi um sábio julgamento, mas, nem bem fora pronunciado, o cadáver desapareceu. Obstinado, o rei retornou, cortou a corda, e recomeçou a caminhada tão pouco compensadora. A voz se fez ouvir de novo, propondo-lhe outro enigma, e outra vez forçando-o a percorrer o mesmo caminho. Continuaram assim: o inexorável espectro habitante do cadáver enredava conto sobre conto, entretecendo destinos, emaranhando vidas, enquanto o rei era conduzido de lá para cá. A existência em sua totalidade, com suas alegrais e horrores, foi sendo descrita. Os fios da fantasia iam se retorcendo constantemente em nós de justiça e injustiça, entrelaçando-se em pretensões conflitantes.
Quando findará o ordálio? Esta é uma prova, realmente, ou um jogo? Ao todo forma propostos vinte e quatro enigmas, e o rei conseguiu solucionar todos, com exceção do último.
Neste, conta-se uma história de pai e filho, ambos membros de uma tribo montanhesa de caçadores, da qual o pai era um dos chefes. Os dois, numa caçada, depararam com a pegada de duas mulheres. Ora, o pai era viúvo e o filho ainda solteiro; o pai, triste com a morte da esposa, rejeitava qualquer sugestão de um novo casamento. Porém as pegadas eram particularmente encantadoras: segundo os olhos de ambos, que eram caçadores experientes, teriam sido feitas por mãe e filha, ambas integrantes da nobreza e fugitivas de alguma casa aristocrática- talvez, quem sabe, uma rainha e uma princesa. As pegadas maiores sugeriam a beleza da rainha e as menores, a fascinação da princesa. O rapaz ficou muito excitado, porém o pai teve que ser persuadido. O filho propôs que o pai se casasse com a mulher das pegadas maiores, e ele com a das pegadas menores, como requeriam a condição e a idade de ambos. Teve que insistir algum tempo, mas por fim o chefe aceitou e os dois juraram solenemente cumprir o combinado.
Apressaram-se a seguir o rastro, alcançando por fim as duas infelizes criaturas que eram realmente, como supunham, uma rainha e uma princesa a fugir, aflitas e ansiosas, de uma situação criada no lar pela morte inesperada do rei. Mas deu-se uma complicação decepcionante: a filha tinha o pé maior. Por conseguinte, em obediência ao juramento, o filho viu-se obrigado a casar com a rainha.
Pai e filho conduziram suas conquistas para a aldeia da montanha e tornaram-nas suas esposas: a filha casou-se com o chefe e a mãe com o filho. Ambas conceberam.
“Qual era o exato grau de parentesco entre os dois meninos que nasceram?”, perguntou a voz do espectro habitante do cadáver. Dizei com precisão: o que eram e não eram um do outro?”
O rei, carregando seu fardo, foi incapaz de encontrar um termo inequívoco que definisse a relação complicada. Finalmente fora encontrado um enigma capaz de emudecê-lo. Continuando a caminhar num passo notavelmente ágil, foi remoendo o problema em silêncio. Os meninos eram paradoxos viventes de um parentesco simultâneo que fazia deles várias coisas a uma só vez: tio e sobrinho, sobrinho e tio, pelo lado materno e paterno ao mesmo tempo.
Mas não é assim que acontece com todas as coisas, encaradas de um ponto de vista secreto? Todas elas não são, quando olhadas em profundidade, seus próprios opostos? Mesmo que o intelecto discriminador e que a lógica que categoriza a linguagem e o pensamento humanos possam recusar-se a aceitar o fato paradoxal, ainda assim cada aspecto e cada momento da vida incluem, de algum modo, qualidades diametralmente opostas àquelas que aparentemente abrangem. Na pessoa do rei pode ocultar-se, secreta, uma ausência lacunar de realeza, um traço de negligência que pode conduzir, em certas ocasiões, ao descuido na vigilância de forasteiros possivelmente perigosos, ou talvez à tendência de subestimar presentes que chegam em envoltórios humildes. Da mesma forma, a impiedade pode estar sob a veste de um religioso mendicante. Embora pareça ter renunciado ao mundo do poder e da ambição, o monge mendicante pode ser um adepto da magia negra e dedicar as noites às sinistras práticas da necromancia.
Teremos aqui atingido a lição oculta do aglomerado caótico desses vinte e quatro contos narrados pelo espectro no cadáver? É esse o sentido da insólita iniciação? O rei teria sido mais sábio silenciando do que na perspicácia de suas respostas?
Levado a refletir sobre o problema do próprio caráter e de sua situação atual, o soberano caminhava em silêncio, com admirável agilidade, sem que parecesse preocupá-lo o longo ordálio noturno. Aparentemente o espectro ficou impressionado, pois ao falar de novo a voz adquirira um tom respeitoso.
“Senhor”, disse ele, “parecereis alegre, apesar destas penosas idas e vindas pelo campo funerário. Sois destemido; agrada-me a vossa determinação. Podeis ficar com este cadáver, portanto. Levai-o convosco. Vou deixá-lo.”
Mas o fim ainda não chegara, ou teria sido pouco o mérito da aventura.
Talvez tivesse sido uma prova de valor, com seu quê de pilhéria. Ou não teriam sido, as ocorrências do campo crematório e do espectro no cadáver, muito mais do que um macabro artifício literário, a emoldurar uma porção de contos sem relação entre si. Porém, se a coleção é engenhosa e divertida, é também solene e profunda; o rei e o espectro estão unidos por um significativo enigma da alma.
Antes de partir, a voz alertou que os projetos do mago asceta encerravam um terrível perigo para ambos; sob a santa vestimenta da renúncia ao mundo pulsava uma ilimitada sede de poder e sangue. O nigromante estava prestes a utilizar-se do rei para uma grande aventura de magia negra, primeiro como cúmplice, depois como vítima de sacrifício humano.
“Ouvi, ó rei!”, advertiu o espectro. “Atendei ao que devo dizer-vos e, se dais valor ao vosso próprio bem, fazei exatamente o que eu disser. O monge mendicante é um impostor muito perigoso. Com poderosos encantamentos vai forçar-me a retornar a este cadáver, que converterá em ídolo. Pretende colocá-lo no centro de seu círculo mágico, venerar-me como a uma divindade, e, durante essa cerimônia, oferecer-vos como vítima. Vai ordenar-vos que vos prosterneis com reverência, primeiro de joelhos e depois prostrado na mais servil atitude de devoção, tocando o chão com vossa cabeça, mãos e ombros. Tentará então decapitar-vos de um só golpe com vossa própria espada.
“Há apenas uma maneira de escapar. Quando ordenar que vos prostreis, deveis dizer: ‘Por favor, mostrai-me como fazer essa prostração servil para que eu, um rei não habituado a tal, aprenda a assumir essa atitude de adoração.’ Quando ele se estirar no solo, cortai-lhe a cabeça com um rápido golpe de espada. Nesse instante todo o poder sobrenatural que o feiticeiro tenta conjurar da esfera dos seres celestiais descerá sobre vós. E sereis verdadeiramente um rei poderoso!”
O espectro partiu e o rei, livre, prosseguiu caminho. O mago não traía qualquer impaciência por ter sido forçado a esperar: ao contrário, parecia admirar-se por ver cumprida a tarefa. Empregara o tempo completando só trabalhos rituais do círculo mágico. Este fora todo demarcado com uma repugnante matéria colhida nas proximidades, uma espécie de pasta composta de pó de ossos moídos misturado ao sangue dos defuntos. Iluminava, desagradável, a luz trêmula dos pavios embebidos em gordura de cadáveres.
O feiticeiro retirou a carga dos ombros do rei, lavou o cadáver, enfeitou-o com grinaldas como se fosse uma imagem sagrada e colocou-o no centro do círculo mágico. Convocou o espectro com poderosos encantamentos, forçando-o a entrar no corpo que preparara. Principiou a adoração, como um sacerdote a celebrar uma divindade convidada a habitar uma imagem sagrada, na qualidade de hóspede augusta. Chegou finalmente o momento em que induziria o rei a prostrar-se, primeiro sobre os joelhos, depois com a face no solo: mas, ao dar-lhe essa ordem, seu nobre acólito pediu-lhe que lhe mostrar-se como colocar-se na postura correta. O terrível monge pôs-se de joelhos. O rei observou e esperou. Quando o nigromante se inclinou, mãos, ombros e rosto sobre o chão, o rei, com um rápido golpe, decepou-lhe a cabeça.
O sangue jorrou. O monarca colocou o corpo de costas sobre o solo e, com outro golpe certeiro, abriu-lhe o peito. Arrancou-lhe o coração, oferecendo-o e à cabeça, em oblação, ao espectro no cadáver.
Elevou-se de todos os quadrantes, na noite, um imenso rumor de júbilo: vinha da tumultuosa hoste de espíritos, almas e ghouls, a aclamar o vencedor. Com sua façanha este redimira os poderes sobrenaturais da ameaça do nigromante, que por pouco os enfeitiçara e reduzira à escravidão.
O espectro no cadáver elevou a voz lúgubre, agora exprimindo alegria e louvor. “O nigromante”, disse, “pretendia o poder absoluto sobre almas, ghouls e sobre todas as presenças espirituais do domínio sobrenatural. Esse poder agora será vosso, ó rei, quando terminardes a vida terrena. Por enquanto, ser-vos-á concedido o domínio sobre a toda a Terra. Se vos atormentei, sereis agora compensado por isso. O que desejais? Manifestai-o, e vosso desejo será atendido”.
O rei pediu, como compensação pelas fadigas havidas no decorrer da mais estranha noite que já vivera, que os vinte e quatro enigmas narrados pelo espectro e a própria história daquela noite fossem difundidos pelo mundo todo, tornando-se para sempre famosos entre os homens.
O espectro prometeu. “Além do mais”, continuou a voz, “essas vinte e quatro histórias não apenas serão celebradas, mas até mesmo Shiva, o grande Deus, Senhor dos Senhores, Senhor de todos os Espectros e Demônios e Mestre-Asceta dos Deuses, as celebrará. Demônios ou espectros perderão seu poder, em qualquer tempo ou lugar em que esses contos forem narrados. Quem recitar, com devoção sincera, um único deles, ficará livre do pecado”.
Com essa grande promessa o espectro partiu abruptamente e no mesmo instante apareceu, cheio de glória, Shiva, Senhor do Universo, acompanhado por uma multidão de deuses. Saudou o rei e, sereno, agradeceu-lhe ter libertado os poderes do mundo espiritual das mãos impuras do ambicioso asceta. A divindade anunciou que os poderes cósmicos ficavam agora a serviço do libertador, como retribuição por ter evitado o uso maléfico que deles faria o mago- que pretendia exercer seu domínio sobre o Universo-, que o monarca tomaria posse total desses poderes quando findasse sua vida terrena e que no decorrer da existência governaria a terra. Shiva confiou-lhe, com as próprias mãos, a espada divina “Invencível”, que lhe conferiria a soberania do mundo; então ergueu o véu da ignorância que ocultara à consciência do rei a essência imortal de sua vida humana.
Abençoado por essa iluminação, o soberano ficou livre para deixar o sinistro campo de provações. A aurora vinha surgindo quando retornou aos amplos salões de seu palácio senhorial. Voltou como quem desperta de uma noite de sono intranqüilo. Os contos do espectro no cadáver haviam sido como uma sucessão de sonhos torturantes, aparentemente intermináveis, embora comprimidos num espaço de tempo relativamente breve. A vítima, aprisionada na seqüência infindável, a caminhar de lá para cá no campo crematório, cruzando o cenário de vidas passadas, assemelhava-se a alguém adormecido a revolver-se, agitado, no leito. Tal como se pode descobrir, ao acordar, que compreendemos agora o que parecia obscuro no dia anterior, sendo muito mais intrincado e profundo em sua obscuridade do que poderíamos supor- tão obscuro como o enigma da própria vida-assim o rei emergiu de sua experiência noturna transformado e repleto de conhecimento.
Durante os anos seguintes realizou-se o miraculoso cumprimento do prometido esplendor e sua vida terrena transcorreu em virtude e glória.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Maconha do ponto de vista psicossomático

Vento de maio...
Falar de psicologia, pessoas, idéias...
Viver...

“ Certa vez, um homem muito abatido dirigiu-se ao Iud (discípulo de Rabi Jacob Tschak Lubliner) e pediu-lhe que rezasse por sua saúde. O Iud disse-lhe que fosse pedir isso a um certo senhor chamado Shalom, numa cidade próxima.
Ao chegar, o homem descobriu que o único Shalom que vivia lá era um bêbado que morava na periferia da cidade, num casebre miserável. O homem esperou que Shalom ficasse sóbrio e então fez seu pedido. O bêbado pediu um galão de uísque e, após recebê-lo, aconselhou o homem a se banhar no rio, pois desta forma ficaria curado. E aconteceu como lhe havia dito.
Quando o homem voltou a se encontrar com o Iud, perguntou ao rabino por que o havia enviado a um bêbado. O rabino respondeu: ‘Shalom, meu amigo, tem uma natureza fantástica e gentil e freqüentemente ajuda aqueles que o procuram. Sua única falta é o vício por um bom trago, mas é este desespero por bebida que o salva de todos os outros pecados.”

Meu objetivo aqui é abordar o consumo de maconha do ponto de vista psicossomático, isto é, me aproximando de seus aspectos biológicos, psíquicos e sociais.


Do ponto de vista biológico, a maconha não pode ser considerada uma droga tão forte por não ser uma droga letal. Me parece por tudo que estudei que a maconha é tão forte quanto o álcool e não vejo razões para um ser proibido e o outro não. Racionalmente me parece que os dois deviam ser proibidos ou os dois liberados.
A história da maconha no Brasil tem seu início com a própria descoberta do país. A maconha é uma planta exótica, ou seja, não é natural do Brasil. Foi trazida para cá pelos escravos negros, daí a sua denominação de fumo-de-Angola. O seu uso disseminou-se rapidamente entre os negros escravos e nossos índios, que passaram a cultivá-la. Séculos mais tarde, com a popularização da planta entre intelectuais franceses e médicos ingleses do exército imperial na índia, ela passou a ser considerada em nosso meio um excelente medicamento indicado para muitos males. A demonização da maconha no Brasil iniciou-se na década de 1920 e, na II Conferência Internacional do Opio, em 1924, em Genebra, o delegado brasileiro Dr. Pernambuco afirmou para as delegações de 45 outros países: "a maconha é mais perigosa que o ópio". Apesar das tentativas anteriores, no século XIX e princípios do século XX, a perseguição policial aos usuários de maconha somente se fez constante e enérgica a partir da década de 1930, possivelmente como resultante da decisão da II Conferência Internacional do Opio. O primeiro levantamento domiciliar brasileiro sobre consumo de psicotrópicos, realizado em 2001, mostrou que 6,7 por cento da população consultada já havia experimentado maconha pelo menos uma vez na vida (lifetime use), o que significa dizer que alguns milhões de brasileiros poderiam ser acusados e condenados à prisão por tal ofensa à presente lei. No presente, um projeto de lei foi aprovado no Congresso Nacional propondo a transformação da pena de reclusão por uso/posse de drogas (inclusive maconha) em medidas administrativas.
A maconha produz seus efeitos quando inalada durante no máximo 3 horas, se nenhum outro cigarro for fumado, sendo o pico plasmático de sua ação de 10 a 30 minutos após o consumo de um cigarro seu. A absorção é de 50% do THC presente na planta nessa forma de consumo que é a mais comum, (a absorção é maior se a planta é ingerida- 90%).
O THC é absorvido através da fixação pulmonar (na forma de cigarros). Seus efeitos físicos são: boca seca, olhos vermelhos, aumento de batimentos cardíacos. A memória de curto prazo do usuário é afetada e sua percepção de sons e de tempo também. Para se ter efeitos na percepção, o consumo deve ser maior que 5 mg.
As alterações provocadas em seus usuários são: euforia, hiperestesia sensorial, sono, aumento do apetite por doces.
Por seus vários efeitos, a maconha é considerada um afrodisíaco.
A coordenação motora é afetada com o consumo da maconha, embora essa alteração possa não ser notada devido ao hábito de consumo de maconha e ao treino.
A boca seca se deve a uma diminuição da secreção salivar. Os olhos vermelhos se devem a uma hiperemia conjuntival acompanhando uma queda da pressão intra-ocular (o que poderia indicar o uso da cannabis no tratamento de glaucoma). Os olhos também ficam mais secos.
A maconha é perigosa para quem tem problemas vasculares. Num caso relatado em 1979, um homem de 25 anos desenvolveu um infarto subendocardial agudo após fumar cannabis.
O efeito mais evidente e imediato do fumo ou da ingestão de cannabis é o rápido aumento do ritmo cardíaco (até 90 batimentos por minuto), que diminui no intervalo de uma hora e não constitui nenhuma ameaça para um indivíduo saudável. A pressão sanguínea pode se elevar ligeiramente e pode ocorrer hipotensão postural. Os fumantes desenvolvem uma tolerância aos efeitos cardíacos e psicotrópicos do THC após duas ou três semanas de fumo diário.
Hoje em dia sabe-se que a absorção neurológica da cannabis se faz através de receptores específicos no cérebro. Esses receptores estão presentes na maior parte no hipocampo, mas também há receptores no córtex e nos testículos.
Após o consumo de maconha, o sítio receptor, uma proteína da superfície da célula, ativa proteínas G no interior da mesma e leva a uma cascata de outras reações que geram euforia.
Em 1984, Miles Herfenham e seus colegas do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA mapearam os receptores de cannabis no cérebro, usando análogos radioativos do THC desenvolvidos pela Pfizer Central Research.
O maior número de receptores foi encontrado no hipocampo, onde ocorre a consolidação da memória e onde traduzimos o mundo externo num “mapa” cognitivo e espacial, e no córtex cerebral, onde se realiza a cognição mais elevada. Pouquíssimos receptores foram encontrados no tronco cerebral, onde os sistemas automáticos de manutenção da vida são controlados. Isso pode explicar porque é praticamente impossível morrer de uma dose excessiva de cannabis.
A presença de receptores de THC nos gânglios basais- uma área do cérebro envolvida na coordenação motora- pode permitir aos canabinóides mitigar a espasticidade. Alguns receptores estão localizados na medula espinhal, sendo talvez o sítio da atividade analgésica da cannabis. Um pequeno número de receptores foi encontrado nos testículos, o que possivelmente explica os efeitos do THC sobre a espermatogênese e o impulso sexual.
O primeiro uso documentado do cânhamo como remédio aparece por volta de 2300 a.C., quando o legendário imperador chinês Chen Nong prescreveu a “chu-ma” (cânhamo fêmea) para o tratamento de constipação, gota, beribéri, malária, reumatismo e problemas menstruais. Chen Nong classificou a “chu-ma” como um dos Supremos Elixires da Imortalidade.
Os médicos aiurvédicos da Índia usavam o bangüê , mistura líquida de cânhamo, leite, açúcar e especiarias, para tratar dezenas de doenças. Ele era indicado para diarréia, epilepsia, delírio e insanidade, cólica, reumatismo, gastrite, anorexia, consumpção, fístula, náusea, febre, icterícia, bronquite, lepra, distúrbios do baço, diabetes, resfriado, anemia, dor menstrual, tuberculose, elefantíase, asma, gota, constipação e malária. Outros preparados do cânhamo são usados para induzir o sono, como diurético e no combate à hidrofobia (raiva), para sangue na urina, hemorróidas, febre do feno, asma e doenças da pele.
O cânhamo era um remédio popular muito apreciado na Europa medieval e recebeu menção honrosa como planta medicinal em herbários como os de William Turner, Mattioli e Dioscobas Taberaemontanus.
No final do século XIX, a cannabis foi incluída em dezenas de remédios disponíveis mediante prescrição ou diretamente no balcão. Entre eles estavam o digestivo Chlorodyne e o Corn Collodium, manufaturados pela Squibb Company. A Parke-Davis produzia Casadein, Utroval e medicamento para cólica veterinária e a Eli Lilly produzia os tabletes sedativos Dr. Brown’s Xarope, Xarope composto Tolu, Xarope Lobelia, Neurosine e Cura a Tosse em um dia. A empresa Grimault and Sons vendia cigarros de cannabis como remédio para asma.
Com a oficialização de sua proibição, a cannabis foi eliminada da farmacopéia inglesa em 1932. Foi expurgada da farmacopéia americana em 1942 e o Merck Index suprimiu-a de seu catálogo em 1950. A farmacopéia indiana continuou a arrolar a cannabis até 1966.
No entanto, apesar de toda a proibição, das campanhas e recusas da parte dos governos, as pessoas continuaram a pesquisar. Exemplos de pesquisas com maconha: uso terapêutico da maconha na síndrome metabólica (2005); uso terapêutico da cannabis sativa como anticonvulsivo em quadros de epilepsia (2005); estudo do canabidiol, um dos componentes da cannabis sativa, sendo usado como agente anti-psicótico (2006); uso terapêutico da cannabis sativa em doenças neuro-degenerativas (2007).
A passagem de THC através da placenta está presente e comprovada em animais e seres humanos. Em fetos de mães usuárias de maconha foram constatadas complicações como retardo do crescimento intra-uterino, diminuição do peso gestacional e indução de leucemia. Os pesquisadores alertam para uma atenção especial às gestantes usuárias de maconha, no sentido de terem orientação para os riscos que trazem para seus filhos.


Do ponto de vista social, segundo Zoja, o consumo de drogas visa retomar para o sujeito o contato com o sagrado. Ela é uma tentativa de iniciação, insconsciente e por isso mesmo, impossível de se concluir num processo iluminador para o sujeito.
Segundo Zoja, as etapas do processo podem ser resumidas assim:
1. Situação inicial a ser transcendida porque insignificante. Assim como, para fugir à insignificância, o adolescente da sociedade primitiva se entregava à iniciação que lhe conferia enfim uma identidade completa e adulta, assim também o homem de nossa sociedade, perdido, passivo, capaz apenas de consumir e de repetir gestos realizados por milhões de outros homens, sonha secretamente com uma transformação que o torne adulto, inconfundível, protagonista, criador, e não mais somente consumidor.
2. Morte iniciática. Aceitação de uma fase de fechamento em relação ao mundo, renúncia à identidade anterior, afastamento libidinal dos investimentos usuais (que na nossa sociedade deveria consistir sobretudo numa abstinência das práticas consumistas); vejam com que propriedade Fernando Pessoa nos fala dessa etapa.
INICIAÇÃO

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa:
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda Caverna,
Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma extrema,
Mas vês que são teus iguais.

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto, entre ciprestes.

Neófito, não há morte. “

3. Renascimento iniciático, favorecido psicologicamente pela partilha com outros da experiência, pelo acompanhamento dos rituais e, quimicamente, por um consumo controlado da droga, esse controle é uma fantasia quase sempre presente entre os jovens drogados, mas, em geral, só em certas sociedades possui realidade efetiva.

Somos impelidos a um consumo desenfreado por estarmos numa sociedade consumista. Há sempre algum tipo de encontro, de prazer subjetivo associado ao consumo da droga, além de seus efeitos físicos.
É a manutenção desse prazer , enquanto sentido encontrado para o sujeito,com a construção de uma outra via de acesso a ele que constitui o trabalho com “redução de danos” ou com uma abordagem filosófica do assunto da droga dentro de consultórios.
Acho que o Bachelard nos ajuda a pensar: “ Como todos os hábitos que caracterizariam o ser- caso fossem conhecidos- não se aproveitam simultaneamente de todos os instantes que os poderiam atualizar, a unidade de um ser parece sempre tocada de contingência. No fundo, o indivíduo já não é mais que uma soma de acidentes- mas, além disso, essa soma é, ela própria, acidental. Da mesma maneira, a identidade do ser nunca se realiza plenamente, ela é afetada pelo fato de a riqueza dos hábitos não ter sido regida com atenção suficiente. A identidade global é feita, então, de repetições desnecessárias mais ou menos exatas, de reflexos mais ou menos detalhados. Sem dúvida, o indivíduo empenha-se em copiar o hoje do ontem; essa cópia é ajudada pela dinâmica dos ritmos, mas nem todos esses ritmos estão no mesmo ponto de sua evolução, e é assim que a mais sólida das permanências espirituais, de identidade desejada, afirmada num caráter, se degrada em semelhança. A vida, então, conduz nossa imagem de espelhos em espelhos; somos, assim, reflexos de reflexos, e nossa coragem é feita da lembrança de nossa decisão. Mas, por firmes que sejamos, jamais nos conversamos inteiros, porque nunca fomos conscientes de todo o nosso ser.”


Do ponto de vista psíquico, a toxicomania é uma fuga diante do desejo. O toxicômano vive a ilusão de achar que é possível achar objetos adequados, recusando a natureza insaciável do desejo. A dependência se reduz a perseguir um prazer negativo, perseguição necessariamente sem fim na qual se dá um “neodesejo”, um desejo novo e imperioso, que reavia a onipotência infantil e torna impossível a saciedade.
Mas o consumo funciona como um ritual que dá um sentido, uma identidade de “herói negativo” ao usuário.
Segundo Andrew Weil, que fez pesquisas com sujeitos humanos com maconha, a cannabis sativa inalada funciona como um placebo ativo, intensificando os estados psíquicos pré-existentes. A maconha pode ser assim considerada uma droga “esotérica”: seus pormenores são conhecidos por seus poucos usuários.
Para Hillman, a droga funciona como uma ruptura técnica dentro do contexto familiar, quando não é possível se ouvir o chamado transcendente de outra forma dentro desse contexto.

Uma história que pode nos ajudar ao lidarmos com a questão das drogas...

O REI E O CADÁVER

Foi extraordinária a maneira como o rei se viu envolvido na aventura.
Diariamente, durante dez anos, aparecia no salão de audiências, onde ele solenemente sentado ouvia petições e dispensava justiça, um asceta mendicante que, sem lhe dizer palavra, lhe oferecia uma fruta. O soberano aceitava o presente trivial, passando-o sem pensar em um instante, a seu tesoureiro, que permanecia em pé atrás do trono. Sem fazer pedido algum, o mendigo se retirava. Perdia-se na multidão de suplicantes, não revelando o menor sinal de desapontamento ou impaciência. Porém, um dia, passados uns dez anos há primeira aparição, um macaco domesticado, escapando dos aposentos das damas no interior do palácio, entrou aos pulos no salão e saltou sobre o braço do trono. O mendicante acabara de apresentar seu presente e o rei, brincando, entregou-a ao símio. Quando o animal mordeu a fruta, uma valiosa jóia caiu de dentro dela e rolou pelo chão. Os olhos do rei abriram-se de espanto. Voltou-se com dignidade para o tesoureiro: “O que foi feito de todas as outras frutas?”, perguntou. O tesoureiro não soube responder. Sempre atirara aqueles presentes inexpressivos através da gelosia da alta janela da sala do tesouro, não se dando sequer ao trabalho de abrir a porta. Desculpando-se, correu para o subterrâneo do tesouro real. Abrindo-o, dirigiu-se à parte situada sob a pequena janela, onde encontrou, no chão, uma massa de frutas apodrecidas em vários estágios de decomposição. Lá estava, entre os detritos de tantos anos, uma grande porção de gemas incalculavelmente preciosas.
Muito feliz, o rei confiou-as ao tesoureiro. De espírito generoso, o monarca não era ávido por riquezas, mas sua curiosidade fora despertada. Por isso, quando na manhã seguinte o asceta apresentou sua oferenda aparentemente modesta, o rei recusou-se a aceitá-la, a menos que o ofertante quisesse conversar um pouco.
O santo homem respondeu que desejava falar-lhe em particular. O rei lhe satisfez o desejo e o mendicante formulou, afinal, seu pedido.
Disse ao rei necessitar da ajuda de um herói, que fosse home verdadeiramente intrépido, para uma tarefa ligada à magia.
O rei interessou-se em saber mais.
“As armas dos verdadeiros heróis”- explicou o asceta- “são famosas nos anais mágicos por possuírem poderes de exorcismo muito especiais.”
O rei permitiu que o suplicante continuasse.
O forasteiro convidou-o a ir, na noite da próxima lua nova, ao grande campo funerário onde eram cremados os mortos da cidade e enforcados os criminosos.
Sem se intimidar, o rei concordou: o asceta, cujo nome- bem adequado era “Rico em paciência”, despediu-se.
Chegou a noite marcada, da próxima lua nova. Desacompanhado, o rei cingiu sua espada, envolveu-se em um manto escuro e, ocultando o rosto, rumou para incerta aventura. À medida que se aproximava do campo de cremação, fazia-se mais visível o tumulto de espectros e demônios que pairavam pelo lúgubre lugar; em festim, regalando-se com os cadáveres celebravam uma horrenda folia. Destemido, o soberano continuou seu caminho. Ao passar pelos crematórios, à luz das piras ainda fumegantes, seus olhos alertas meio viram, meio adivinharam, os esqueletos e crânios calcinados, dispersos e enegrecidos. Os ouvidos ressoando com o medonho tumulto dos ghouls, continuou caminhando em direção ao lugar do encontro; lá estava o feiticeiro, desenhando atentamente um círculo mágico no solo.
“Aqui estou”, disse o rei. “Que posso fazer por ti?”
O outro mal ergueu os olhos. “Ide até o outro extremo do campo crematório”, disse, “e encontrareis, balançando-se em uma árvore, o cadáver de um enforcado. Cortai a corda e trazei-o aqui.”
O rei voltou-se e, cruzando outra vez o grande campo, chegou a uma árvore gigantesca. Sem luar, apenas o frágil tremular das piras meio extintas iluminava a noite cortada pelo ruído inumano dos duendes. Ainda assim, o rei não sentiu medo; encontrando o enforcado que, suspenso à árvore, oscilava quase imperceptivelmente, subiu e cortou a corda com a espada.
O corpo, ao tombar, gemeu como se estivesse sido ferido. O rei, acreditando tratar-se de um vivente, começou a apalpar aquela forma rígida. Uma gargalhada estridente escapou da garganta e o monarca percebeu que o corpo estava habitado por um fantasma.
“De que te ris?”, perguntou.
No momento em que falou o cadáver voltou de volta ao galho da árvore.
Subindo novamente, o rei cortou a corda e trouxe o corpo para baixo.
Levantou-o, dessa vez sem uma palavra, colocou sobre os ombros e começou a andar. Não dera muitos passos quando a voz no cadáver principiou a falar: “Ó rei, permiti que encurte vosso caminho com uma história”, disse. O soberano não respondeu, e o espírito narrou seu conto. Quando acabou seu conto, perguntou ao monarca, o julgamento dele a respeito da história, ameaçando-o: “Se souberdes a resposta e não a derdes, vossa cabeça se partirá em cem pedaços.”
O rei acreditou que sabia qual era a resposta. Embora desconfiasse que, se pronunciasse uma palavra, o cadáver voaria de volta para a árvore, não desejava que sua cabeça explodisse.
Quando a última palavra desse parecer deixou os lábios do rei, seu fardo, gemendo em fingida agonia, evaporou-se-lhe das costas, e o monarca presumiu que deveria ter voltado à árvore, pendendo-lhe novamente dos galhos. Voltando sobre seus passos, cortou a corda, recolocou o fardo aos ombros e tentou outra vez.
“Meu caro senhor”, disse a voz, outra vez se dirigindo a ele, “incumbiram-vos de uma tarefa difícil e curiosa. Permiti-me entreter-vos, enquanto isso, com um conto agradável”. (...)
Foi um sábio julgamento, mas, nem bem fora pronunciado, o cadáver desapareceu. Obstinado, o rei retornou, cortou a corda, e recomeçou a caminhada tão pouco compensadora. A voz se fez ouvir de novo, propondo-lhe outro enigma, e outra vez forçando-o a percorrer o mesmo caminho. Continuaram assim: o inexorável espectro habitante do cadáver enredava conto sobre conto, entretecendo destinos, emaranhando vidas, enquanto o rei era conduzido de lá para cá. A existência em sua totalidade, com suas alegrais e horrores, foi sendo descrita. Os fios da fantasia iam se retorcendo constantemente em nós de justiça e injustiça, entrelaçando-se em pretensões conflitantes.
Quando findará o ordálio? Esta é uma prova, realmente, ou um jogo? Ao todo forma propostos vinte e quatro enigmas, e o rei conseguiu solucionar todos, com exceção do último.
Neste, conta-se uma história de pai e filho, ambos membros de uma tribo montanhesa de caçadores, da qual o pai era um dos chefes. Os dois, numa caçada, depararam com a pegada de duas mulheres. Ora, o pai era viúvo e o filho ainda solteiro; o pai, triste com a morte da esposa, rejeitava qualquer sugestão de um novo casamento. Porém as pegadas eram particularmente encantadoras: segundo os olhos de ambos, que eram caçadores experientes, teriam sido feitas por mãe e filha, ambas integrantes da nobreza e fugitivas de alguma casa aristocrática- talvez, quem sabe, uma rainha e uma princesa. As pegadas maiores sugeriam a beleza da rainha e as menores, a fascinação da princesa. O rapaz ficou muito excitado, porém o pai teve que ser persuadido. O filho propôs que o pai se casasse com a mulher das pegadas maiores, e ele com a das pegadas menores, como requeriam a condição e a idade de ambos. Teve que insistir algum tempo, mas por fim o chefe aceitou e os dois juraram solenemente cumprir o combinado.
Apressaram-se a seguir o rastro, alcançando por fim as duas infelizes criaturas que eram realmente, como supunham, uma rainha e uma princesa a fugir, aflitas e ansiosas, de uma situação criada no lar pela morte inesperada do rei. Mas deu-se uma complicação decepcionante: a filha tinha o pé maior. Por conseguinte, em obediência ao juramento, o filho viu-se obrigado a casar com a rainha.
Pai e filho conduziram suas conquistas para a aldeia da montanha e tornaram-nas suas esposas: a filha casou-se com o chefe e a mãe com o filho. Ambas conceberam.
“Qual era o exato grau de parentesco entre os dois meninos que nasceram?”, perguntou a voz do espectro habitante do cadáver. Dizei com precisão: o que eram e não eram um do outro?”
O rei, carregando seu fardo, foi incapaz de encontrar um termo inequívoco que definisse a relação complicada. Finalmente fora encontrado um enigma capaz de emudecê-lo. Continuando a caminhar num passo notavelmente ágil, foi remoendo o problema em silêncio. Os meninos eram paradoxos viventes de um parentesco simultâneo que fazia deles várias coisas a uma só vez: tio e sobrinho, sobrinho e tio, pelo lado materno e paterno ao mesmo tempo.
Mas não é assim que acontece com toadas as coisas, encaradas de um ponto de vista secreto? Todas elas não são, quando olhadas em profundidade, seus próprios opostos? Mesmo que o intelecto discriminador e que a lógica que categoriza a linguagem e o pensamento humanos possam recusar-se a aceitar o fato paradoxal, ainda assim cada aspecto e cada momento da vida incluem, de algum modo, qualidades diametralmente opostas àquelas que aparentemente abrangem. Na pessoa do rei pode ocultar-se, secreta, uma ausência lacunar de realeza, um traço de negligência que pode conduzir, em certas ocasiões, ao descuido na vigilância de forasteiros possivelmente perigosos, ou talvez à tendência de subestimar presentes que chegam em envoltórios humildes. Da mesma forma, a impiedade pode estar sob a veste de um religioso mendicante. Embora pareça ter renunciado ao mundo do poder e da ambição, o monge mendicante pode ser um adepto da magia negra e dedicar as noites às sinistras práticas da necromancia.
Teremos aqui atingido a lição oculta do aglomerado caótico desses vinte e quatro contos narrados pelo espectro no cadáver? É esse o sentido da insólita iniciação? O rei teria sido mais sábio silenciando do que na perspicácia de suas respostas?
Levado a refletir sobre o problema do próprio caráter e de sua situação atual, o soberano caminhava em silêncio, com admirável agilidade, sem que parecesse preocupá-lo o longo ordálio noturno. Aparentemente o espectro ficou impressionado, pois ao falar de novo a voz adquirira um tom respeitoso.
“Senhor”, disse ele, “parecereis alegre, apesar destas penosas idas e vindas pelo campo funerário. Sois destemido; agrada-me a vossa determinação. Podeis ficar com este cadáver, portanto. Levai-o convosco. Vou deixá-lo.”
Mas o fim ainda não chegara, ou teria sido pouco o mérito da aventura.
Talvez tivesse sido uma prova de valor, com seu quê de pilhéria. Ou não teriam sido, as ocorrências do campo crematório e do espectro no cadáver, muito mais do que um macabro artifício literário, a emoldurar uma porção de contos sem relação entre si. Porém, se a coleção é engenhosa e divertida, é também solene e profunda; o rei e o espectro estão unidos por um significativo enigma da alma.
Antes de partir, a voz alertou que os projetos do mago asceta encerravam um terrível perigo para ambos; sob a santa vestimenta da renúncia ao mundo pulsava uma ilimitada sede de poder e sangue. O nigromante estava prestes a utilizar-se do rei para uma grande aventura de magia negra, primeiro como cúmplice, depois como vítima de sacrifício humano.
“Ouvi, ó rei!”, advertiu o espectro. “Atendei ao que devo dizer-vos e, se dais valor ao vosso próprio bem, fazei exatamente o que eu disser. O monge mendicante é um impostor muito perigoso. Com poderosos encantamentos vai forçar-me a retornar a este cadáver, que converterá em ídolo. Pretende colocá-lo no centro de seu círculo mágico, venerar-me como a uma divindade, e, durante essa cerimônia, oferecer-vos como vítima. Vai ordenar-vos que vos prosterneis com reverência, primeiro de joelhos e depois prostrado na mais servil atitude de devoção, tocando o chão com vossa cabeça, mãos e ombros. Tentará então decapitar-vos de um só golpe com vossa própria espada.
“Há apenas uma maneira de escapar. Quando ordenar que vos prostreis, deveis dizer: ‘Por favor, mostrai-me como fazer essa prostração servil para que eu, um rei não habituado a tal, aprenda a assumir essa atitude de adoração.’ Quando ele se estirar no solo, cortai-lhe a cabeça com um rápido golpe de espada. Nesse instante todo o poder sobrenatural que o feiticeiro tenta conjurar da esfera dos seres celestiais descerá sobre vós. E sereis verdadeiramente um rei poderoso!”
O espectro partiu e o rei, livre, prosseguiu caminho. O mago não traía qualquer impaciência por ter sido forçado a esperar: ao contrário, parecia admirar-se por ver cumprida a tarefa. Empregara o tempo completando só trabalhos rituais do círculo mágico. Este fora todo demarcado com uma repugnante matéria colhida nas proximidades, uma espécie de pasta composta de pó de ossos moídos misturado ao sangue dos defuntos. Iluminava, desagradável, a luz trêmula dos pavios embebidos em gordura de cadáveres.
O feiticeiro retirou a carga dos ombros do rei, lavou o cadáver, enfeitou-o com grinaldas como se fosse uma imagem sagrada e colocou-o no centro do círculo mágico. Convocou o espectro com poderosos encantamentos, forçando-o a entrar no corpo que preparara. Principiou a adoração, como um sacerdote a celebrar uma divindade convidada a habitar uma imagem sagrada, na qualidade de hóspede augusta. Chegou finalmente o momento em que induziria o rei a prostrar-se, primeiro sobre os joelhos, depois com a face no solo: mas, ao dar-lhe essa ordem, seu nobre acólito pediu-lhe que lhe mostrar-se como colocar-se na postura correta. O terrível monge pôs-se de joelhos. O rei observou e esperou. Quando o nigromante se inclinou, mãoes, ombros e rosto sobre o chão, o rei, com um rápido golpe, decepou-lhe a cabeça.
O sangue jorrou. O monarca colocou o corpo de costas sobre o solo e, com outro golpe certeiro, abriu-lhe o peito. Arrancou-lhe o coração, oferecendo-o e à cabeça, em oblação, ao espectro no cadáver.
Elevou-se de todos os quadrantes, na noite, um imenso rumor de júbilo: vinha da tumultuosa hoste de espíritos, almas e ghouls, a aclamar o vencedor. Com sua façanha este redimira os poderes sobrenaturais da ameaça do nigromante, que por pouco os enfeitiçara e reduzira à escravidão.
O espectro no cadáver elevou a voz lúgubre, agora exprimindo alegria e louvor. “O nigromante”, disse, “pretendia o poder absoluto sobre almas, ghouls e sobre todas as presenças espirituais do domínio sobrenatural. Esse poder agora será vosso, ó rei, quando terminardes a vida terrena. Por enquanto, ser-vos-á concedido o domínio sobre a toda a Terra. Se vos atormentei, sereis agora compensado por isso. O que desejais? Manifestai-o, e vosso desejo será atendido”.
O rei pediu, como compensação pelas fadigas havidas no decorrer da mais estranha noite que já vivera, que os vinte e quatro enigmas narrados pelo espectro e a própria história daquela noite fossem difundidos pelo mundo todo, tornando-se para sempre famosos entre os homens.
O espectro prometeu. “Além do mais”, continuou a voz, “essas vinte e quatro histórias não apenas serão celebradas, mas até mesmo Shiva, o grande Deus, Senhor dos Senhores, Senhor de todos os Espectros e Demônios e Mestre-Asceta dos Deuses, as celebrará. Demônios ou espectros perderão seu poder, em qualquer tempo ou lugar em que esses contos forem narrados. Quem recitar, com devoção sincera, um único deles, ficará livre do pecado”.
Com essa grande promessa o espectro partiu abruptamente e no mesmo instante apareceu, cheio de glória, Shiva, Senhor do Universo, acompanhado por uma multidão de deuses. Saudou o rei e, sereno, agradeceu-lhe ter libertado os poderes do mundo espiritual das mãos impuras do ambicioso asceta. A divindade anunciou que os poderes cósmicos ficavam agora a serviço do libertador, como retribuição por ter evitado o uso maléfico que deles faria o mago- que pretendia exercer seu domínio sobre o Universo-, que o monarca tomaria posse total desses poderes quando findasse sua vida terrena e que no decorrer da existência governaria a terra. Shiva confiou-lhe, com as próprias mãos, a espada divina “Invencível”, que lhe conferiria a soberania do mundo; então ergueu o véu da ignorância que ocultara à consciência do rei a essência imortal de sua vida humana.
Abençoado por essa iluminação, o soberano ficou livre para deixar o sinistro campo de provações. A aurora vinha surgindo quando retornou aos amplos salões de seu palácio senhorial. Voltou como quem desperta de uma noite de sono intranqüilo. Os contos do espectro no cadáver haviam sido como uma sucessão de sonhos torturantes, aparentemente intermináveis, embora comprimidos num espaço de tempo relativamente breve. A vítima, aprisionada na seqüência infindável, a caminhar de lá para cá no campo crematório, cruzando o cenário de vidas passadas, assemelhava-se a alguém adormecido a revolver-se, agitado, no leito. Tal como se pode descobrir, ao acordar, que compreendemos agora o que parecia obscuro no dia anterior, sendo muito mais intrincado e profundo em sua obscuridade do que poderíamos supor- tão obscuro como o enigma da própria vida-assim o rei emergiu de sua experiência noturna transformado e repleto de conhecimento.
Durante os anos seguintes realizou-se o miraculoso cumprimento do prometido esplendor e sua vida terrena transcorreu em virtude e glória.